segunda-feira, 22 de março de 2010

MUEDA - 1971 (Alfredo Justiça)

Caros Amigos, 

Junto remeto um pedaço da minha vivência após a "Bela Época". Encontrava-me em pleno cenário da guerra colonial, no norte de Moçambique, e a nostalgia atacou "forte e feio" numa noite de intensa vigília. Os nervos demasiado tensos... e, porque não confessá-lo, o medo presente em sobressaltos de alerta. Foi um tempo que ainda hoje está bem presente, embora decorridos mais de 38 anos.
(…)
Um abraço
A. Justiça
.
Carta enviada de Mueda em 1971


Poema de Amor


Meu amor:
acabei há pouco de te falar,
de te ouvir
e depois fiquei para aqui,
a olhar as coisas,
os livros,
a tua foto,
sem vontade de ler,
de fazer fosse o que fosse.

Nao aconteceu nada
de verdadeiramente importante,
pois na prática,
a distância
de Mueda a S. Martinho
é a mesma
que de Mueda a Paris
ou à China.
Para além, no entanto,
destas distâncias no espaço,
há as outras.
E com as tuas palavras,
o teu carinho,
a tua tristeza
e o teu amor,
eu senti
quando olhei o teu retrato,
que estavas triste,
como se pressentisses
nessa altura
esta separação,
e através dele,
senti que estavas perto,
que me fazias companhia.
Já passaram algumas horas,
já é tarde
e nao sei bem
se era isto,
que me apetecia.
Estou triste.
Verdadeiramente triste,
verdadeiramente só.
Custa-me escrever,
porque me apetecia
correr para os teus braços
como uma criança pequena,
fechar os olhos,
pedir-te beijos
e chorar
para ser ainda mais feliz.
Nao posso correr, afinal,
e escrevo apenas.
Digo coisas.
Entretenho-me
a enganar-me a mim
e a enganar o tempo
na ilusao
de que ele passará mais depressa.
Mas eu sei que será longo,
longo
e se não deixará enganar.
Passaram-se dias
desde que parti.
Dias em que viajei,
li livros,
ouvi música,
talvez sem a ouvir,
- mas procurei-a, pelo menos.
Dias em que pensei em tudo
e não pensei em nada.
Dias mais ou menos iguais
a tantos outros.
Hoje deitei-me,
desejando ler um pouco.
E, afinal,
mal me instalei,
mal li as primeiras páginas,
comecei a chorar
como uma Madalena.
Eu que sou tão forte
e me julguei invulnerável,
Eu que não chorei quando parti,
nem desde então até agora.
Não sei o que se partiu.
Uma couraça de segurança,
que insensivelmente
criei a minha volta.
Ou uma tensão,
que me tem oprimido.
sem que eu disso me apercebesse.
Mas que é profundamente belo,
profundamente humano,
profundamente bom.
E fiquei muito tempo de olhos abertos.
Nem aqui,
nem em S. Martinho,
nem em Lisboa,
num Mundo,
onde as pessoas se amam sempre,
espontaneamente,
num Mundo,
de amor puro e inteiro
que bem poderia ser
o de toda a gente,
se as pessoas se deixassem
a si mesmas,
ser naturais como crianças.
Encontrei-me lá contigo,
porque era a ti que eu procurava.
Porque é a ti que sempre procuro
no meu bocadinho pessoal
desse Mundo maravilhoso,
tao diferente do outro,
- o de lá de fora -
e que se torna assim
tão sem importância,
que nele nem vale a pena pensar,
nem viver.
Sinto agora a cabeça oca.
Nao consigo ligar duas ideias,
e um cansaço estúpido,
invencível,
desce sobre mim.
Apetecia-me ter-te aqui,
poder segurar entre as minha,
as tuas mãos,
tão boas,
e tão meigas,
- gosto delas... -
Olhar-te,
ver-te sorrir,
não dizer nada,
e deixar o sono
vir devagarinho.
Seria tão bom!
Mas vou dormir.
E quando tiver acabado de escrever,
vou virar o candeeiro para a parede,
acender um cigarro,
olhar as coisas na penumbra,
e deixar-me adormecer devagarinho.
Prolongar ao máximo
este enlanguescer,
pensando em que
para além de tudo,
sou imensamente feliz.
Porque,
Só sendo-se feliz,
Se pode amar assim.
O meu quarto,
enche-se agora da tua imagem,
e tu estás,
nos meus livros,
nos meus olhos,
em todo o meu ser.
Fazes parte de mim,
do meu passado
e do meu futuro.
Nada te desalojará.
Porque tu,
não tens um lugar dentro de mim.
TU ESTÁS EM MIM.
Na pele,
nos olhos,
nas paredes,
enfim,
em todos os lugares.
Andas pelo meu sangue,
partilhas os meus pensamentos,
vives todas as minha horas,
povoas a minha solidao.
Quando leres este poema,
faz á noite,
como eu vou fazer agora.
Apaga as luzes,
deixa só uma, pequenina acesa,
para desenhar o contorno das coisas.
Deita-te comodamente,
descontrai-te,
olha para o que te cerca
e pensa que há,
lá longe,
- combatendo uma guerra estúpida,
sem sentido,
inócua, -
alguém para quem
representas muito.
Pensa que há,
um bocadinho desse alguém
em todas essas coisas que te cercam,
- no armário,
nas paredes duras,
nas cadeiras
e nos livros.
Porque,
essas cadeiras,
essas paredes,
os livros,
sao marcas da vida.
Sao existencias paralelas a nossa.
Pensa que,
vida,
existencia,
realidade,
são amor.
O amor dos homens que construíram.
O amor da matéria que se deu.
O amor de um Mundo que gira,
que gera,
que continua.
Um amor imenso e eterno.
Um amor que aumenta
na pequenez dos segundos breves
que passam
até se tornarem cósmicos.
Um amor bem grande
feito de outros amores.
E pensa que estou lá.
Nao numa dimensão mística,
em que não creio.
Antes numa transposição de mim,
nas coisas,
num dar-me que gostaria,
que envolvesse também as coisas,
as coisas simples,
feias,
e humildes,
tao importantes como as outras.
Até logo amor.
Eu sou feliz.
SÊ-O TAMBÉM COMIGO, SIM?!...



Mueda, Junho de 1971
Planalto dos Macondes
Cabo Delgado
Norte de Moçambique


In Memorium
Para ti,
no dia em que me deixaste definitivamente,
por vontade de Deus e contra a minha vontade.
Continuas presente,
estás presente,
em todas as coisas,
até nas lágrimas que agora caem.
Adeus amor, até... sempre.



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