quinta-feira, 15 de abril de 2010

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Do blogue irmão Externato Ramalho Ortigão - Antigos Alunos

                                                                                                     por João Jales


1975

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- Mas quais colonialistas? Não sei do que falas, o meu pai era um empregado de escritório lá em Angola, a minha mãe tratava da casa e cozinhava de vez em quando uns bolos e uns doces para fora… Pensavas o quê?

Assim falou a Irene, respondendo a umas considerações esquerdistas do Jorge sobre o papel dos portugueses em África. Ele ficou calado, esta descrição de uma pequena burguesia com dificuldades não encaixava no quadro que imaginara, em que o pai da garota, um anafado colono de pingalim sentado numa varanda, vigiava um grupo de africanos que trabalhavam a sua terra...

Nesse final de Setembro de 1975 o Verão nunca mais acabava, mantendo-se a temperatura bem acima dos trinta graus. O rio, à beira do qual estavam os dois estendidos, era o único refúgio possível. Ao longe, um ribombar surdo quebrava ocasionalmente o silêncio que os envolvia, o que, juntamente com uma nuvem negra no horizonte, parecia prenunciar uma trovoada, frequente nessa época do ano.

Ambos tinham vinte anos, ela regressara há pouco de Angola com a família, ele frequentava vagamente a Universidade de Lisboa, coleccionando inscrições, sem entusiasmo nem rumo definido, em Faculdades diferentes. Circunstâncias diversas tinham reunido os dois neste lugarejo esquecido do Minho, de onde as famílias de ambos eram oriundas, ela por necessidade de refúgio enquanto os pais recomeçavam a sua vida na metrópole, ele numa espécie de exílio e castigo que não lhe pesava, já que lhe evitava as discussões familiares sobre a sua vida académica…

Durante o silêncio que se seguiu ele olhou para ela, um corpo magro com uns olhos assustados, não sabendo o que responder. Não era este o rumo de conversa que imaginara quando, depois de almoço, se encontrara com ela para virem gozar os prazeres daquela praia fluvial. Com a cabeça cheia de inflamadas opiniões e definitivas certezas sobre tudo, que adquirira em conversas pela madrugada alfacinha e nalguns livros que costumava folhear e passear, mais do que ler, pelos cafés e cervejarias que frequentava, esperara que ela o ouvisse, admirada e admiradora. Mas não, e o tom de firme discordância vindo daquela criatura, aparentemente frágil, tinha-o apanhado de surpresa.

- Tinha a ideia que as coisas eram lá mais fáceis – acabou por responder, enquanto entravam na água – ouço muitos relatos que incluem festas, belos jardins, criados para todos os serviços…

Foi interrompido por uma “amona”, engasgando-se com a água morna e límpida. Embrenhado na sua dissertação esquecera-se que estava a discutir e tomar banho com uma garota da sua idade! Durante uns mergulhos e umas braçadas preguiçosas as considerações foram suspensas.
.- Em Angola tudo era mais simples e menos formal – continuou ela depois, enquanto se estendia na toalha – aqui há mais frio, mais roupa, mais cerimónia, mais gente a reparar em tudo o que fazemos e dizemos. Se calhar tem a ver com o clima, na Primavera, quando vim, o frio ainda era de rachar, imagino como será passar aqui o Inverno!

- E aqui no Norte é ainda mais frio do que em Lisboa – e contou-lhe, a propósito, a sua vida lá, as longas noites a conversar precisamente sobre a necessidade de novas mentalidades e novas formas de organização social. Assistira a algumas reuniões da extrema-esquerda, era amigo de militantes do Partido (dizia-se só assim, o Partido) mas as regras rígidas, a disciplina e a aparente frugalidade dos que se devotavam dessa forma à causa da classe operária não o atraíam. Um grupo anarquista de bons vivants acolhia-o, sem grandes obrigações a não ser vez em quando dar à manivela de uma máquina policopiadora na sede da Batalha ou colar uns cartazes - “Arriba Franco, màs alto que Carrero Blanco”, mas ela não percebeu a piada, não conhecia os pormenores do atentado que vitimara o primeiro-ministro espanhol. Falou-lhe então dos romances clássicos que devorava e que continuavam guardados (escondidos?) no seu quarto alugado, porque os clássicos agora eram Marx, Mao e Lenine, que tinham substituído Tolstoi, Proust e Camus.

- Ah, os meus livros! Nem sei se estão cá ou se ficaram lá – lembrou-se ela – E a minha roupa, tenho vivido só com o que trazia numa pequena mala, sei que há uns caixotes com coisas que vieram de barco mas estão ainda em Lisboa, nem sei bem o que têm. Não havia Porfírios em Luanda, claro, mas havia onde comprar roupa moderna, o Augustus tinha uma boutique sempre com novidades e havia também a Xabanu… Eu não tinha muito dinheiro mas gostava de ver e, de vez em quando, juntava uns restos das semanadas e lá comprava qualquer coisa, geralmente nos saldos.

Até ela ouvira falar dos Porfírios, que eram realmente o centro da moda jovem portuguesa. As suas montras cheias de roupa com desenhos coloridos e psicadélicos, flores, calças que varriam toda a largura do passeio e adereços femininos de tamanhos disparatados e formas ameaçadoras eram um mundo fascinante; nem o Jorge resistia a lá comprar uma ou outra peça de roupa mais esotérica. Para usar nas festas e encontros fora dos círculos revolucionários, claro.
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Ela continuou:
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-Discos, de que tanto falas, não tinha, eram muito caros. Mas muitos amigos tinham as últimas novidades, que não vinham da metrópole, de onde chegavam sempre muito atrasadas, mas da África do Sul, através dos funcionários da Tap e das companhias de navegação.

O Jorge contou-lhe então das tardes passadas na Melodia, Valentim de Carvalho, Sinfonia… Escolhiam-se os discos nos caixotes de exposição e entregavam-se a uma funcionária que os punha a tocar num dos gira-discos disponíveis; a cada um deles correspondia um cubículo, parecia uma cabine telefónica, onde um altifalante de má qualidade dava uma ideia do conteúdo dos LPs. Ele ouvia e comprava menos discos ultimamente, o Rock transformara-se, depois da crise petrolífera de 1973, numa música formal, tecnicamente bem executada, com longas composições e muito trabalho em estúdio, mas tinha perdido a sua urgência, excitação e espontaneidade. O chamado Rock Sinfónico (Yes, Genesis, Camel, Renaissance, Emerson, Lake and Palmer) não era exactamente o que o Jorge apreciava:

- Vi os Genesis em Cascais em Março deste ano. Um bom concerto, muito bem montado, com uma cenografia fantástica, parecia uma ópera, e um som como nunca ouvi. É claro que gostei, mas prefiro uma música em que me sinta mais participante e não tanto espectador… Ainda por cima à entrada estava o Copcom, com camuflados e chaimites, a disparar rajadas de metralhadoras para o ar como forma de obrigar as pessoas a formar filas para entrar, pareciam um bando de cowboys!

- Não me fales de metralhadoras, nem imaginas o que aconteceu no último filme que vi em Luanda- respondeu a Irene. - Foi também em Março passado, já havia trocas de tiros entre o MPLA, a FNLA e a UNITA. Cada um deles controlava uma zona de Luanda e havia sítios em que se trocavam tiros de prédio para prédio! O filme que fomos ver no cinema Império, ao ar livre, era sobre a Segunda Guerra, o ataque dos americanos a umas ilhotas no Pacífico. A segunda metade do filme era um tiroteio constante, demorámos um bocado a perceber que os buraquinhos na tela não podiam ser feitos pelos actores… Saímos do cinema de gatas e a rastejar, enquanto ouvíamos e víamos as balas tracejantes passando-nos por cima da cabeça!

- Mas já havia guerra mesmo ali ao teu lado antes do 25 de Abril – fez notar o Jorge.

Mas “ao lado” era uma má escolha de palavras, tudo em Angola funcionava numa escala diferente. Ela explicou-lhe que “ali” era a centenas de quilómetros de distância, só a passagem de colunas militares, veículos e fardas, lembravam a guerra colonial. Esta de que falava era à porta de casa:

- Nos últimos dias andávamos com vários cartões, uma mistura de bilhete de identidade e salvo-conduto, um de cada um dos partidos. Tínhamos que saber diariamente quem controlava a zona onde queríamos ir, não se podia mostrar o cartão errado...

Tudo isto parecia longínquo e irreal ao Jorge, só lhe importava saber que a sombra da tropa e da guerra colonial já não pairava sobre ele. Interessou-se mais pela descrição que ela fez seguidamente das praias, da baía de Luanda e da sua Ilha (que afinal era uma península, acabou por perceber), o Mussolo e os dias de praia que entravam pela noite dentro…

Ele ouvia-a, com os olhos semicerrados por causa do Sol que lhe aquecia e secava o corpo, sentindo-se transportado a esses locais paradisíacos… Virou a cabeça e olhou para ela para lhe pedir mais pormenores, a conversa era agora mais agradável, a Irene parecia mais em consonância com aquela tarde abafada e parada, em que as suas vozes eram o único som audível. Depois das vindimas, que tinham sido cedo nesse verão quente, todos os autóctones tinham muito que fazer, só eles dois se podiam dar ao luxo de gozar estes últimos dias na praia fluvial. Mas nem chegou a abrir a boca, o humor da sua companheira sofria alterações bruscas, conforme as memórias que lhe vinham à cabeça:

- O pior é o curso que interrompi – continuou a Irene – ainda não sei se me dão equivalência às cadeiras de Engenharia que fiz na Faculdade de Ciências de Luanda. Tenho um certificado que consegui trazer mas estão a colocar-me montes de dificuldades no Porto… Deixei Malanje, onde o meu pai trabalhava na Cotonangue, para ir para Luanda estudar. Sendo filha única não foi fácil fazê-lo e agora nem sei sequer se esse sacrifício me vai servir para alguma coisa!

- Acalma-te, vais ver que tudo vai correr bem, se és boa estudante vais certamente completar o curso num instante, a tua vida aqui em Portugal vai ser muito melhor do que imaginas e vais-te esquecer de Angola sem dar por isso – respondeu ele ... mas realmente pensando que ela não teria força para ultrapassar o mau bocado que passara e o que ainda a esperava. Entretanto afastava uma incómoda mosca que lhe picara a perna:
.– Raio das moscas aqui picam que se fartam! 
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Ela olhou-o longamente e suspirou em silêncio, compreendendo que ele não compreendia e sabendo, com a sabedoria de quem viveu, que ele não tinha ainda vivido o suficiente e ela já tinha vivido demais... 
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Enquanto ele procurava, mas em vão, desviar o tema da conversa com um galanteio ou uma graça em que era geralmente hábil, a trovoada desabou literalmente sobre eles, grossos pingos de água morna encharcaram-lhes a roupa e a terra sedenta começou a exalar um cheiro inconfundível, enquanto os trovões e os relâmpagos pareciam ter-se concentrado sobre e contra eles.

A trovoada libertou ambos dos seus mundos, dos seus pensamentos e das suas recordações, obrigando-os a empenharem-se na tarefa comum de salvar a roupa e o lanche, fugir da chuva e regressar a casa.

Setembro acabou e o Jorge regressou a Lisboa, nunca mais pensando nesse encontro com a Irene, embora as diversas conversas com ela nesse mês lhe tivessem alterado definitivamente a forma de encarar a questão dos “retornados”. Nas raras e curtas idas à aldeia nos anos seguintes nunca mais a reencontrou. A aldeia cresceu e transformou-se tanto na década de 80 que, ao voltar no Verão de 1994 para passar lá uma semana, quase não a reconheceu.
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Passeando uma noite a pé com um primo, residente, foi sabendo as estórias à volta das novas ruas e casas que tinham surgido. A aldeia original que ele conhecera era hoje como que um subúrbio desta nova e moderna povoação. Subitamente parou, admirado. Perto da casa dos seus avós erguia-se uma casa moderna, num estilo arrojado e claramente diferente de todas as outras, integrando materiais e assimetrias que mostravam um gosto requintado e inesperado neste local. O primo informou-o:
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- É a casa da Irene, lembras-te dela? Formou-se em Engenharia Civil e casou com um arquitecto no Porto, onde estudou. Fizeram aqui esta casa, que as pessoas da terra não apreciam muito, mas que já foi incluída em revistas estrangeiras de arquitectura, como exemplo das novas tendências nessa área.

Enquanto admirava a arrojada habitação o Jorge recordou-se da frágil Irene, que tinha afinal cumprido os seus planos de vida. Esta casa era a demonstração de que ultrapassara o regresso atribulado, o frio que tanto estranhara, as saudades de África, os problemas familiares … e esquecido certamente o difícil ano de 1975 e o jovem diletante e imaturo que, não a tendo verdadeiramente conhecido nem compreendido, receara por ela vinte anos antes.

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João Jales
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C O M E N T Á R I O S
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luis machado disse...
João
É bom o teu texto,fez-me regressar a Lisboa, ao mundo de que falas.
Casei com uma "Irene",embora não seja do Porto, e não namorei em Mondim de Basto.
Recordo-me do Jorge em Lisboa,numa manifestação anarquista(partiram a montra do Apolo 70, simbolo do consumismo capitalista)a distribuir panfletos, com uma canadiana com o capuz levantado para não ser reconhecido.O problema era que o gajo tinha quase dois metros de altura...
Agora uma tirada filosófica:"Escrever é sempre escrever para alguém."Eduardo PC.
Não percas o jeito.
Abraços
Luis.
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salette disse...
João, adorei a tua história.É uma fotografia perfeita de uma época, de um ano mesmo. Sentimos que andamos por lá.Foi muito bom iniciar o meu dia com uma leitura tão deliciosamente agradável.
beijinho e.....até á próxima!
Salette
.jorge disse...
fantástico,não tenho melhor para dizer.
o confronto de dois mundos numa tarde de verão enquanto dois adolescentes tomam banho e apanham sol.do melhor que aqui li,merecia outra divulgação.
angola continua a ter as maravilhas que a irene viveu mas já não se podem viver da mesma maneira.
j
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J.L. Reboleira Alexandre disse...
O Jorge conheceu a Irene na Europa. Eu conheci «Irenes» em Luanda, nesse Verão tão quente. A minha estadia nessa bela cidade, entre Janeiro e Outubro de 1975, valeu mais do que todos os livrinhos de bolso(vermelhos ou não) que lera meses antes.
As tragédias vividas por todas as «Irenes» antes e após o abandono daquelas terras côr de fogo, foram fortes de mais não só para os próprios, mas também para nós, quais jovens imberbes, que assistiamos, impotentes e completamente ultrapassados pelo desenrolar dos acontecimentos.
Há por aqui muita história para contar. Com receio de me repetir, volto a dizer que assistimos aqui a um dos momentos mais altos deste blogue.
Obrigado João!
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Sérgio Lopes disse.
Belíssimo texto e um momento elevado de qualquer blogue. Por favor debita-o, com os comentários, no blogue irmão IVS Está lá muita gente que esteve por aquelas bandas nesse período conturbado de tanta, tanta asneira, mas também com gente de cabeça fria.
Não o podes saber, porque nunca to disse, mas eu fui em 1974/75 um dosprincipais coordenadores operacionais da famosa Ponte Aérea. Na altura em que se deu o 25 de Abril era o director comercial da TAP para Angola e S.Tomé, com base em Luanda. Em Agosto de 1974 fui notificado de que regressaria à sede da TAP em Lisboa, mas decidi abdicar dessa "cómoda"transferência e ofereci-me como voluntário para planear e operar a Ponte Aérea que já estava no horizonte de um punhado de pessoas que tinham mantidoa cabeça sobre os ombros e tinha previsto atempada e silenciosamente que a balbúrdia em que o país tinha caído resultaria na necessidade de evacuar a população caucasiana rapidamente para terreno mais seguro.
Quando, finalmente, o poder central se decidiu pela evacuação já tinhamos tudo preparado. Não sei se tens consciência de que essa evacucação ainda é a maior Ponte Aérea toda civil (Vietname foi militar) da história, não tendo, porém, chegado ao Guiness. A história toda ainda está por contar.
Grande abraço e parabéns.
Sérgio
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Isabel Esse disse...
Ainda ninguém falou da fotografia:lindissima,repousante,tranquila,mas que não sei se tem mesmo relação com a história.
Como sempre nos teus contos estamos lá,sentimos o calor,a chuva,a trovoada,tudo!
Não resisto a fazer copy - paste para perguntar uma coisa :'Ela olhou-o longamente e suspirou em silêncio, compreendendo que ele não compreendia e sabendo, com a sabedoria de quem viveu, que ele não tinha ainda vivido o suficiente e ela já tinha vivido demais...'-porque é que as heroinas das tuas histórias são mais sábias que os heróis?
Adorei!IS
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