quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Tromba d’ Eiró

Entrei, de mão dada com a minha tia Laura. Sentei-me lá ao fundo numa cadeira velha. Os pés pendurados porque não chegavam ao chão. As cadeiras eram todas velhas, assim como a barbearia e o seu dono: O tromba d’Eiró.

Nós íamos cortar o cabelo num dos barbeiros da terra. Cabeleireiras, só alguns anos mais tarde. Muito mais tarde...

O tromba d’Eiró, além de velho, era também manco.

A tesoura estalava por cima do pente na cabeça dos clientes.

Dava tesouradas no ar, onde não havia cabelo. Nunca entendi porque razão fazia aquilo. Seria moda ?

A alcunha não sei quem o inventou. Toda a gente o chamava Tromba d’Eiró. Cabeça pequena, no alto do pescoço semelhante a um galo de “ pescoço pelado”, cabelos brancos e muito magro.

Já naqueles tempos, quando eu era pequena, seria nos tempos de agora, uma barbearia unisexo, uma vez que cortava cabelos a homens e mulheres.

A minha tia também se sentou e enquanto lia uma revista, a “ matar” o tempo, o barbeiro ia puxando conversa:

-- Tem chovido muito ! O tempo está mau !

A minha tia ia acenando com a cabeça sem vontade de responder. Eu não tinha voto na matéria. Encolhida na cadeira esperava pacientemente a minha vez.

A barbearia tinha um calendário sujo e com um gatinho deitado num tapete azul. Sim. A barbearia não tinha calendários com mulheres nuas. Era de respeito !

E o Tromba d’Eiró ia tesourando ora no cabelo do cliente, ora no ar.

Eu olhava, admirada com a “ mestria” do artista.

A barbearia ficava situada na rua principal, perto do mercado. Na rua, os passantes, iam olhando e um ou outro, juntamente com um comprimento, também paravam e faziam um comentário. Mas o barbeiro, entretido no corte do cabelo, não dava muita importância.

É que, enquanto nós, cachopos pequenos, não contávamos para o tempo de espera, nem para o lugar que ocupávamos, a menina Laurinha, não ! Essa era fina e havia que lhe prestar mais atenção. Já não seria muito jovem, mas era uma senhora algo bonita e com formas físicas ainda bem proporcionadas. E era a minha tia!

O barbeiro, embora velho e manco, tinha gosto apurado , em relação às suas clientes. O homem tinha bom gosto e a mulher sabia-o. Não saía da barbearia. Mas ele, esperto, mandava-a aos recados. Mandava-a à farmácia ou a qualquer sítio longe.

Enquanto ela ia e vinha com o recado cumprido, ele ia enchendo os olhos com quem lhe aparecia pela loja.

A menina Laurinha era dessas clientes que, quando precisava de cortar o cabelo, dava pretexto para a mulher do Tromba d’Eiró ter de fazer um recado bem longe.

O espelho com as bordas carcomidas pelo tempo, servia, também para reflectir a imagem dos clientes sentados junto à parede.

O balcão onde pousava a navalha, o púcaro da água, o pincel e o sabão “ pinta azul” eramos únicos utensílios usados pelo barbeiro. A tesoura continuava a dar tesouradas ora no cabelo, ora no ar. O pente também girava de um lado para o outro, ligeirinho por entre os dedos do mestre e o cabelo do freguês.

E o Tromba d’Eiró, olhando de soslaio a Laurinha, sentada na cadeira, sem lhe dar grande importância, coisa que o arreliava grandemente.

A barbearia era pequena. O espelho dava a panorâmica de um canto ao outro. O freguês finalmente acabou de ser atendido e uma nuvem de pó de talco inundou-lhe o pescoço. É que o barbeiro entusiasmado apertou com mais força a pequena bomba cheia de pó cheiroso, pensando que poucos minutos depois estaria com a menina Laurinha sob a sua tesoura.

Este pagou e foi embora. Entrei eu. Claro! Uma data de tesouradas e o cabelo lá ficou com umas pontas cortadas e outras mais ou menos. Agora vai-te embora !

Mas a menina Laurinha ! Essa, sim, era já a seguir ! Mas aí tinha que ter mais cuidado.

Colocou a toalha em volta do pescoço, devagarinho, acompanhada de uma data de salamaleques. Afinal não era todos os dias que tinha uma freguesa daquelas.

Penteou, penteou, cortou, penteou, cortou ....

Mais um jeitinho daqui, mais uma tesourada dali e o Tromba d’Eiró foi-se entusiasmando e cortando, cortando. Estava nas nuvens com a cabeça da Laurinha nas suas mãos.

Finalizado o serviço e olhando o espelho, ela soltou um grito de susto.

É que no meio do entusiasmo quase ficou sem cabelo.

Abriu muito os olhos e perguntou aflita:

-- Cortou tão curto ? E agora ?

Ao que o Tromba d’Eiró respondeu sem perder a calma:

-- Agora ? Não se preocupe. É bem de raíz, com o tempo volta a crescer !!

Natércia Martins

2010

História mais ou menos verdadeira passada em Cernache lá pelos anos 40. A barbearia do Tromba d'Eiró ficava muito perto da loja dos Pivetas.

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