Copiado com a devida vénia do blogue irmão, Externato Ramalho Ortigão:
por Z C Faria
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Pela leitura arruinei a vista!
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Bem me avisavam que o nariz sempre a menos de um palmo das páginas sofregamente folheadas só podia dar mau resultado, mas eu persistia no vício daquela leitura, naquela postura, e daí ter ficado precocemente míope, a seguir estigmático, pitosga de 4 olhos desde logo - caixa d'óculos, em suma...
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É que eu lia, lia muito, lia tudo, era mesmo leitor compulsivo, do melhor ao pior, desde a «Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson» de Selma Lagerlöf até à pieguice insuportável do «Coração» de Edmundo de Amicis (nunca percebi como é que um conjunto de histórias deprimentes, a puxar à lágrima, inculcando falsos valores de «heroísmo», sacrifício e resignação na miséria, pode alguma vez ter passado por obra recomendável para um público infantil, mas enfim...). Um dia por semana, à saída da Escola e com o modesto lastro dos conhecimentos recentes, oriundos da decifração garrafal das primeiras letras, em manuais descaradamente propagandísticos das «virtudes» do regime (Lusitos! Lusitas! Viva Salazar! Viva Portugal!), corria-se para aquela carrinha Citröen de chapa ondulada cinzenta, estacionada no largo do chafariz das mulas, que transportava uma das muitas Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian (porventura o melhor, mais vasto e mais bem sucedido projecto de animação cultural jamais desenvolvido num país ainda hoje com uma taxa excessiva de analfabetismo integral, para já não falar do regressivo ou funcional). E assim fui sucessivamente ansiando por ser grumete na «Ilha do Tesouro», pioneiro e caçador por rios e montanhas com Daniel Boone, membro da expedição ao centro da terra, escudeiro medieval junto de «Ivanhoe», protagonista ficcionado (e fictício) em fabulosas aventuras...
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Porém, se as escolhas dos livros são, com frequência geracionais, nomeio «O Velho e o Mar» de Hemingway (cuja edição portuguesa continha um prefácio de Jorge de Sena, de que só mais tarde me aperceberia da sua importância) e a forte impressão que nos meus (para aí) 14 anos produziu a luta do velho Santiago pela sua dignidade e por recuperar o respeito da comunidade piscatória, a batalha desenfreada e astuciosa de dois dias e duas noites com um delfim de 6 metros de cabo a rabo, finalmente capturado, troféu a desvanecer-se aos poucos, engolido, até à revelação da espinha nua, pelas mordeduras vorazes dos tubarões e aincompreensão total dos turistas...
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«Pode-se destruir um homem, mas não se pode vencê-lo»!
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Os livros foram pois os primeiros a vir até mim, depois a música e por último, os filmes. Claro que me acompanha a recordação boa das gargalhadas puras da criança que eu era, suscitadas palas curtas-metragens de Chaplin, nas extraordinárias séries da Keystone, Mutual e da Essanay; No entanto, é-nos pedido aqui a indicação de um momento marcante e, neste particular, comigo ele aconteceu no Cine-Teatro Pinheiro Chagas (como é possível terem-no demolido? Como?), durante a projecção de «Os cavalos também se abatem» de Sidney Pollack, com uma notável interpretação de Jane Fonda.
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Talvez não por acaso, apesar das oito nomeações em 1969, só viria a ganhar o Óscar para o chamado «Melhor Actor Secundário» (péssima tradução de Best Supporting Actor. É que não há actores secundários! Há-os apenas, melhores ou piores, todavia únicos e essenciais, em papéis maiores ou mais pequenos...). Adaptação do romance de Horace McCoy «They shoot horses, don't they?», a acção do filme desenrola-se no micro-cosmos fechado de um salão de uma Maratona de Dança, parábola da sociedade Americana da Grande Depressão, onde a cupidez de negócio do «show-biz» engendra a exploração aviltante e, em pleno desespero, a morte acaba por ser um acto de amor, escapatória (im)possível para uma liberdade humilhantemente negada. Naquela ocasião, nem os deliciosos rebuçados de fruta, comprados ao intervalo, embrulhados em lustroso papel de seda multicolor, a atafulhar bolsos, conseguíram atenuar a comoção angustiada, misto de um estranho amargo na boca e rude soco no estômago com que todos saímos do camarote (bilhetes de lote para um grupo acabavam por se tornar um pouco mais baratos).
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Quanto à música, chegou pela rádio.
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O irmão da minha professora da 1a classe era militar em Goa e a inquietação pelo seu destino após a entrada do exército da União Indiana, levava-a a uma audição intensiva (embora em volume sonoro reduzido) das notícias na fanhosa Emissora oficial, pontuadas pela difusão obsessiva, quase maníaca, do «Fado das Trincheiras», o qual, pela voz de Fernando Farinha, rejurava que se «morrer na batalha/ quero ter por mortalha/ a bandeira nacional». Tal patriotismo exacerbado deixava-me confuso, já que a imagem parecia um pouco chocante e de gosto duvidoso... Adiante...
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As referências evoluiriam depois. A esplanada do Parque dispunha de uma magnífica «juke-box» Wurlitzer (marca que na época, tal como a Fender-Rhodes, tinha acabado de criar um mini-piano eléctrico de 3 oitavas, de imediato utilizado por Ray Charles). A selecção então existente dos sucessos do momento (e até de um pouco antes), seria hoje um rol de clássicos absolutos: para além de diversos temas dos Beatles, Rolling Stones, Kinks, (e também Sheiks, de produção lusa), havia à escolha, entre outros, Mamas & Papas com «Monday, Monday» e «California Dreamin'», Four Tops e «Reach Out, I'll Be There», «San Francisco» de Scott McKenzie (um hino do Flower Power), «When a Man Loves a Woman» por Percy Sledge e os um pouco mais antigos «Barbara Ann» dos Beach Boys, «Tutti Frutti» do Little Richard, «Love Me Tender» de Elvis Presley e por aí fora... um regalo, era o que era! Por uma simples moeda, o fascínio acontecia: marcado o código da canção pretendida, um braço mecânico, numa diligência exacta, retirava o disco da pilha, depositando-o no prato a girar, a agulha descia, precisa, nas espiras e, de súbito, (é um exemplo), enquanto a malta se refrescava com um gelado cassata e um pirolito Ginger Ale da Canada Dry ou da Schweppes, uma cadência de acordes arpejados soava e a voz de Eric Burdon, acompanhado pelos Animals, surgia nas colunas espalhadas pelas áleas: «There is a house in New Orleans, they call the Rising Sun...»
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Feito o exame do 2º ano, recebi como prenda de aniversário um gira-discos Dual, mono, cuja tampa incorporava o altifalante. Já havia estereofonia mas aquele objecto era, de facto, um «mono» obsoleto, sobrante numa qualquer obscura prateleira empoeirada, cacaréu ainda com registo para as 78 voltinhas por minuto das grafonolas, imagine-se; sem dúvida melhor negócio para quem manhosamente o vendeu (vendo-se livre do traste) do que para a ingenuidade bem intencionada de quem o comprara e a quem eu, de todo o coração, só podia estar grato. Como as dimensões estavam formatadas para «singles» e EP's, o meu primeiro Long-Playing de 33 rotações (e um terço) demoraria - «Abbey Road» dos Beatles (fiquem sabendo que também já lá estive, na famosa passadeira da capa, o que é que vocelências julgam?). No duche matinal («She came in through the bathroom window»), ouvia o transistor a pilhas que o meu Pai entretanto ligava, sintonizado já nem sei em que estação, e que, com regularidade, debitava «Come Together», a primeira faixa do lado A. Aquela cadência de viola eléctrica com um ligeiro efeito de distorção durante o refrão, cá para mim era o máximo («Because»... Porque sim, pronto), e fez-me querer (muito!) ter o disco. Todo. («I want you», mas era «so heavy»...) Houve que poupar cada tostãozinho («You never give me your money»), sofrer com paciência («Carry that weight») até que, com um empurrão solidário da Avó («Oh Darling»!), a coisa (em forma de «Something») lá se deu. O LP era como uma luz viva («Here comes the sun») e a felicidade preenchia-me em suave embalo («Golden Slumbers»). «The End». Mas isto não ficou por aqui. A seguir viria a descoberta aprofundada do Zeca, do Brel e, para lá da «Banda» a passar, do Chico Buarque de «Construção», a paixão pelo Jazz e pelos Blues, o gosto certo pela Música Antiga e a certeza que se a Música um dia se acabar poderemos contar com um tempo bem mais escuro e para durar.
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Ainda não sabia que livros, discos, filmes e quadros viriam a ser ferramentas do meu trabalho futuro, mas, passo a passo, ia intuindo e aprendendo que as Artes são algo de imprescindível, que nos torna melhores e melhor nos permite compreender a surpreendente dialéctica estabelecida entre a harmonia e as contradições do Mundo, da Vida, das coisas e das gentes (nós próprios, os Próximos e os Outros)...
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José Carlos Faria
4 comentários:
É sempre com prazer que vemos publicados noutros blogues os nossos artigos.
Significa isso que as memórias são comuns e abrangem toda uma geração e não apenas um pequeno grupo.
Um abraço a todos.
Caro JJ,
Não podia estar mais de acordo contigo! A herança do nosso passado é comum. Tantas, tantas vezes os alunos do IVS e do ERO se cruzaram no passado e durante as sua vidas activas! Muitos anos depois de sairmos dos respectivos colégios cruzei-me profissionalmente com o Tony Vieira Pereira, com a Henriqueta (hoje Castro, que foi uma das minhas grandes colaboradoras na administração da TAP na América do Sul) e em termos pessoais com a Madalena Fernandes (que tinha sido uma das minhas namoradas na adolescência anos "teen".
É imperdoável, mas só agora me ocorreu mandar-te o convite para poderes editar e postar directamente no blogue do IVS.
Grande abraço,
Sérgio
Vou experimentar editar o meu próximo post em simultâneo nos dois blogues, é uma historieta sobre uns piqueniques de Verão.
Será durante a próxima semana, se agradar, repetimos.
Um abraço
JJ
JJ
Tenho a certeza que irá agradar. Usa e abusa.
Grande abraço,
Sérgio (IVS nº 192)
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