quarta-feira, 22 de abril de 2009

O GATO DANÇARINO de Ferreira Lerena

Do nosso estimado Professor Ferreira Lerena recebi mais um belo conto de que vão certamente gostar. Agradeço em nome de todos.  Ressalvo que tive alguma dificuldade em conciliar o formato original com o formato permitido pelo editor de texto do blogue, este mais limitado.  Os espaços entre parágrafos foram-me impostos por este editor, acabando vencido. Mas deixar de publicar o conto é que não.  Aí vai: 

O GATO DANÇARINO 

            O HOMEM poisou o prato em cima de uma re­douça de pano, arremessou num gesto impul­sivo o garfo para longe, e levantou-se, o corpo chambão fremente de desespero. Lá dentro, no quarto, a mulher gemia, con­torcida por dores atrozes no ventre. Há dois dias que era aquilo.

            Entrou no quarto, e o olhar alienado da mulher fi­xou-se no seu, ansiosamente, dramaticamente...

            – Vou chamar o médico – disse o homem. – Não tenho com que pagar-lhe a visita, mas vou chamá-lo.

            Tinham vendido tudo, para suprirem as necessida­des que os vinham flagelando. Venderam todo o bra­gal, todas as alfaias, todo o ouro que ela herdara da mãe... E cada vez mais, dia após dia, se afundavam naquele tremedal sem que a ambos fosse possível es­traçoar os empeços misteriosos em que tropeçavam as suas vidas.

            O homem voltou à cozinha, onde respingava um lume esmarelido, apanhou o garfo e guardou-o com o prato num velho louceiro; depois, vestiu um casaco de bombazina bastante coçado, ajustou o nó da gravata e por alguns  instantes quedou-se, estático, na saleta, olhando com um sorriso babão – sorriso de raiva mal contida – a pequena caixa de vidro que encerrava o esqueleto do gato dançarino. Ali a tinha, em cima daquela mesa, com uma ligeira capa de pó no vidro superior, e, dentro, o esqueleto, erecto, rígido, seco, branco, desse gato original que fizera fortuna... Não para ele, entenda-se: guar­dava-o como uma relíquia, por pensar que era o único objecto valioso que possuía. Valeria de facto alguma coisa? Ou teria ele entrado naquela casa como uma maldição de que jamais se libertaria? A verdade é que os ossos do bicho como que o tinham lançado, de gangão, pelos resvalos da vida, pelos boqueirões ne­gros de sorte avessa... Lembrava-se muito bem como lhe fora parar às mãos. O dono dissera-lhe que valia dinheiro, e ele andava por então bastante necessitado para realizar o casamento. Havia deixado uma vida assaz dura, como moço-de-fretes, em que de canga e chinguiço. carregara pesados fardos de todos os tamanhos e feitios – quando conheceu a mulher, que possuía alguns bens móveis deixados pela mãe. Um mês antes do enlace ele encontrara, longe, em pleno descampado alentejano, um velho caído, moribundo, e, ao lado, duas malas. Ajudou-o como pôde, mas o ve­lho morria sacudido por violentos estertores. Como que o via ainda, a alva cabeça apoiada numas pedras, o falar tão brando que dir-se-ia o ciciar de um eco dis­tante, mostrando-lhe um pequeno esqueleto que, den­tro da caixa de vidro, trazia numa das malas que a custo abrira. Pediu-lhe que o guardasse, que valia muito dinheiro como coisa única. Tinha sido um gato famoso, de lindo pêlo negro, glória da família gravada nos tempos áureos do velho artista de circo. Já era es­queleto há mais de vinte anos. O circo desfizera-se, malbaratado por uma orientação péssima, e o artista abandonara a carreira, já iam largos anos. Com ele, e depois da morte da mulher, ficaram apenas os ossos daquele gato que dançara centenares de vezes ao som de orquestra, em cima de um tamborete, arrebatando as multidões. Agora, ia, perdido, ao acaso, doente, em demanda de um filho, algures por aquelas bandas...

            Mas o velho acabou por morrer e ele deixou-o ali, levando consigo a caixa de vidro. Já longe, viu um grupo de ceifeiros que se ajuntava em volta do morto...

            Dois anos depois, pensando no anátema terrível que aqueles ossos teriam lançado sobre a sua vida, o ho­mem pensava para que queria ele aquilo, que para nada servia. A verdade é que o fora deixando ficar, em cima da mesa, a cobrir-se de pó...

            Suspirou fundo – suspiro de revolta contra si mesmo – e saiu de casa, atordoado. O médico morava a cinco minutos de longada.

            – O que sente ela? – perguntou o clínico.

            – Dores horríveis... muitas dores... não sei... veja se a salva...

            – Bem, vamos ver isso.

            O homem avançou, tataranho de todo, velhaco, e puxou-lhe o braço:

            – Doutor... queria que a salvasse... mas não tenho dinheiro para lhe pagar a visita...

            – Depois se vê...

            – Mas oiça, doutor... – o homem falava quase sem coerência, dominado por algo que o aniquilava. – Não tenho nada... nada... a não ser um objecto... uma rari­dade... Sei que o senhor colecciona coisas raras...

            – Sim? Que raridade?

            O médico falava naturalmente, quase desinteressa­damente, para pôr o outro à vontade, enquanto enver­gava a gabardina.

            – O esqueleto... o esqueleto dum gato...

            O doutor olhou, incrédulo, o carão largo e gordaço do homem, e desatou a rir:

            – Um esqueleto? Para que diabo tem você o esque­leto dum gato?

            – Ah, doutor!... Depois verá... Agora, venha de­pressa, por favor!

            O homem desceu as escadas, atarantado, e o doutor seguiu-o.

            Quando, pouco depois, entrou na saleta, de solho pouco limpo e atmosfera bafienta, o médico desco­briu logo, no esconso, sobre a mesa, o receptáculo de vidro com a estranha preciosidade dentro, e, num mo­vimento de curiosidade, quase brusco, fixou o rosto mazombo do homem, que tremia, cobardemente, os dedos tronchudos, nervosos, apertando com força a espalda de uma cadeira velha. Em contraposição, o médico parecia satisfeito.

            – É um curioso objecto, não lhe parece? – observou o clínico. – Onde é que o descobriu?

            O outro, na pressa de ocultar os modos falaciosos, puxou-lhe o braço:

            – Doutor, ela espera-o... ali, aquela porta... pago-lhe a visita com...com o gato dançarino...

            – Está bem. Aceito!

            E o médico entrou, rápido, no quarto da enferma. A luz entrava pela lucarna, uma luz difusa emanante dos últimos arrancos do espectro solar...A mulher contor­cia-se com dores atrozes, a boca hiante, escumosa, as mãos apertando o ventre numa aflição impressionante. O médico tacteou-lhe a barriga e fixou o rosto esca­vado da moribunda. Esperava que o homem entrasse, mas pela porta entreaberta viu-o, costas voltadas, à espera.

Ministrou à mulher um calmante de morfina, e dei­xou a lúgubre alcova. O outro voltou-se e encarou-o, ansioso.             O médico não queria dar-lhe a notícia assim, de mão-quadra. Irreflectidamente, o seu olhar poisou no esqueleto do gato dançarino que, na sua posição erecta, dir-se-ia pairar como uma ameaça...

            – Então, doutor... salva-se?

            O clínico hesitou. Procurou desviar o assunto:

            – Quem lhe deu o gato dançarino?

            – O gato, não! O esqueleto!... Era dum velho artista de circo!... Dou-lho! Eu dou-lho!... Mas diga-me, doutor... ela salva-se?

            O médico foi brutal na resposta, enervado, impaci­ente, olhando o escaparate de vidro, que lhe fez lem­brar um parente longínquo, não sabia quem...

            – Não se salva! Devia ter-me chamado mais cedo!

            De repente encarou-o, arrependido do que dissera. Não devia ter sido tão violento. Viu o homem empali­decer, os olhos rolarem-lhe nas órbitas ensanguenta­das. Os dedos grossos retesaram-se, o rosto entumeceu ainda mais, com uma expressão terrível, e aquele olhar, agora medonho, foi cair no esqueleto do gato, cuja imobilidade dentro do escaparate parecia ganhar uma atitude diabólica, escarninha – a que ele atribuía toda a sua desgraça!

            O médico observava, silencioso. Ia para o acalmar e pegar na caixa de vidro, mas já o homem, num súbito impulso, violento e terrível, sob o peso da dor, abatia dois punhos de ferro sobre o escaparate, enchendo a casa de um fragoroso estilhaçar de vidros. O esqueleto do gato dançarino desfizera-se em minúsculos boca­dos...

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